segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Um gatilho, mil dedos


O principal fator que difere o ser humano dos outros animais, além do polegar opositor, é o uso da razão. É isso que o torna a criatura mais magnífica do planeta, capaz de compor sinfonias, construir prédios, salvar vidas, entre tantos outros feitos surpreendentes. Porém, outra característica que o torna único é a capacidade de odiar. Mais do que amar, o homem odeia (e muito).

No último sábado, 12 de outubro, o vídeo de uma tentativa de assalto, que culminou com um ladrão baleado, dominou os portais eletrônicos do país. Após dominar a vítima, e tomar posse de sua moto, o ladrão acaba surpreendido por um policial militar, que disferiu dois tiros contra o infrator (o qual acabara de completar a maioridade). Ao primeiro momento, a reação comum é a de adrenalina e satisfação em ver o bandido baleado. Qualquer pessoa, movida pela revolta ao ver uma pessoa “boa” (sim, as vítimas sempre são figuras puras, éticas e protegidas de qualquer análise moral) ter um bem levado, sente a sensação de prazer em ver o bandido acabar no chão.

Ademais, é compreensível que, no momento em que o homem sente sua vida ameaçada, o mesmo tenha como reação desejar, do fundo de suas vontades, a morte do outro ser. Nada de anormal nisso. Porém, o que espanta é o ódio coletivo, saber que as pessoas, mesmo enxergando o jovem de 18 anos caído no chão, gemendo, suplicando por sua vida, sentem gozo em vê-lo morrer. Isso, sim, é mais surpreendente do que o próprio vídeo. 

Ao colocar algo desse tipo, a enxurrada de ironias e xingamentos, como do tipo “não tá contende, leva pra casa”, faz-se tão comum e previsível quanto trânsito em São Sebastião em época de férias. A questão é que esse círculo vicioso do ódio gera, apenas, mais ódio. É simples e óbvio, porém, bem como viver o momento presente, são situações difíceis de compreender.

O intuito aqui não é entrar no politicamente correto e falso puritanismo. Obviamente, o gatilho da arma do bandido não é acionado sozinho... E justamente por tal fato, é um conjunto de fatores e processos sociais que criam a combinação entre pólvora, chumbo, vítima e morte. A chave do processo é enxergar que enquanto a vontade em ver um semelhante falecer for maior do que a vontade em lutar por uma nova situação social, com mais igualdade e oportunidades, o ódio sempre irá gerar mais ódio. 

Mais uma vez, há a necessidade de se desculpar por entrar, mais uma vez, em uma argumentação tão óbvia e clichê. Porém, como as coisas que realmente importam na vida, essa mensagem não é complexa, porém extremamente difícil de se compreender (e, mais do que isso, de se viver).

A intenção aqui não é passar uma imagem santa do autor do texto. Pelo contrário, até porque os amigos sabem o “espírito de porco do mesmo”, o qual, como o personagem “Coringa”, no filme “Batman, o Cavaleiro das Trevas”, adora ver o “circo pegar fogo”. Porém, o mesmo dá muito mais valor ao que realmente importa, ações reais, do que ações superficiais e tão automáticas quanto uma frase repetida ao longo do tempo. No lugar de perder linhas desse texto para exemplificar tal fato, fica a indicação da análise do “homem cordial”, por Sérgio Buarque de Holanda.

Por fim, sem apontar o bandido apenas como um coitadinho, e tampouco condená-lo à morte friamente, com todo o ódio que a razão trouxe ao ser humano, o ideal é compreender todos os processos que envolvem o fato, políticos e sociais, principalmente. Porém, essa análise não será levantada nesse texto, a fim de evitar encher os servidores de dados em nuvem ao redor do mundo.

É entender que o jovem de 18 anos, “marrento com o canhão na mão”, é o mesmo que já foi um bebê com olhar inocente, o qual tendo uma foto sua publicada em alguma rede social com uma frase de autoajuda, possivelmente teria milhares de compartilhamentos. Entender que é fácil julgar tendo sua criação garantida com uma boa educação, amor e conforto, quando, em contrapartida, a linguagem de milhões de marginalizados da sociedade é a “lei do cão”, onde o código de Hamurabi impera, com sua lei de talião.

Ademais, fica a referência ao belo discurso de Luiz Ruffato, na abertura da Feira do Livro de Frankfurt. Não seria exagero dizer que o texto acima poderia ser resumido nas linhas seguintes: “ Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios – o semelhante torna-se o inimigo.”

Um comentário:

  1. Até chorei com seu texto e discutia isso em meu face outro dia, por não ACREDITAR o quanto os "humanos" gostam mais de cachorros e não se importam com os motivos que tornam alguém tão vulnerável. Parece que o mundo não tem solução mesmo com tanta falta de amor. De qualquer forma, saber que compactuo das mesmas opiniões que uma pessoa tão inteligente quanto você, me dão um certo "alívio" de saber que realmente existe vida inteligente "ainda"....

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